O mês de Maio de 2024 será marcado pelas enchentes que ocorrem no Rio Grande do Sul.
O alto volume de chuvas levou ao transbordamento do lago Guaiba numa intensidade nunca antes registrada.
Dados da defesa civil de 10 de maio de 2024 apontam: 437 municípios afetados, 70.722 pessoas em abrigos, 337.346 desalojados, 756 feridos , 143 desaparecidos, 116 óbitos e uma população de 1.947.372 pessoas afetadas.
Estes números não são definitivos e tendem a subir.
O Brasil se comoveu e uma grande onda de solidariedade mobilizou a nação para socorrer o povo gaúcho na maior catástrofe registrada até então.
Análise
Mas o que dizer da saúde e do coração dos alagados? Como aliviar este sofrimento e as consequências desta tragédia humana sem precedentes?
Vamos refletir:
Registra-se um aumento expressivo de desastres naturais e calamidades nos anos recentes.
Comparado a primeira metade do século passado esta incidência já está 6 vezes maior e a tendência é de crescimento!
Além de toda tragédia econômica e material que estes eventos causam temos um impacto incomensurável de perdas de vidas humanas e agravo na saúde das populações atingidas.
O aumento da urbanização tem aumentado a exposição de populações a alagamentos e hoje as inundações são as calamidades mais frequentes globalmente.
Estudo publicado na revista Nature em 2021 demonstraram, por imagens de satélite, que no período de 2000 a 2015 a população mundial exposta a inundações aumentou de 58 para 86 milhões de pessoas.
Isto significa um aumento superior de 20% ao ano! Há projeções de aumentos ainda mais significativos a partir de 2030.
Ocorre um aumento expressivo da mortalidade de cerca de 50% no primeiro ano após a enchente.
Há um aumento de hepatites, doenças gastrointestinais e leptospirose decorrentes do contato com a água contaminada.
Outro efeito adverso grave é que ocorre maior infestação de mosquitos nas áreas alagadas que são transmissores da dengue, o que é muito preocupante num país com incidência elevada da Dengue como ocorre no Brasil.
Portanto, podemos prever um aumento de casos de Dengue nas áreas alagadas.
E o Coração?
É conhecido o aumento de eventos cardíacos agudos e o agravo das cardiopatias após calamidades.
O estresse emocional pode desencadear a Síndrome do Coração Partido ou doença de Takotsubo, já discutido neste blog, que simula um ataque cardíaco com disfunção ventricular.
Acredita-se que seja decorrente de um desbalanço hormonal com grande liberação de adrenalina e norepinefrina após evento traumático.
Após inundações, na primeira semana ocorre um expressivo aumento de Paradas Cardiorrespiratórias (PCR), Infartos Agudos do Miocárdio (IAM), Insuficiência Cardíaca (ICC), Arritmias e Síndromes Coronarianas Agudas (SCA).
Ocorre decréscimo após a primeira semana e teremos um novo pico em torno da sétima semana.
O furacão Katrina atingiu New Orleans no dia 28 de agosto de 2005 com efeito devastador, 80 % da cidade foi inundada e permaneceu alagada por diversas semanas.
Suas consequências sobre a saúde da população é motivo de estudos até os dias atuais.
Triplicou-se a incidência de IAM após esta tragédia e já está documentado que esta elevação persistiu aumentada por um período de pelo menos 6 anos!
A causa desta elevação da incidência de IAM é multifatorial e é determinada pelo aumento dos fatores de risco cardíaco clássicos, fatores psicossociais e ambientais.
Entre os fatores de risco clássicos podemos elencar o aumento do consumo de cigarros, a elevação do colesterol, agravo da Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) e o descontrole do Diabetes Mellitus (DM).
Muito disto é relacionado ao estresse emocional, dificuldade de acesso a medicamentos e perda de seguimento médico.
Do outro lado ocorre aumento de transtornos psiquiátricos como ansiedade e depressão, abuso de álcool e narcóticos que agridem o nosso sistema cardiovascular.
O desemprego, efeito colateral cruel destas calamidades, também é um fator de risco tão grave quanto é ser portador de DM e HAS.
O Estresse crônico advindo desta situação modifica a fisiologia com redução da fibrinólise e aumento da trombofilia (anormalidades da coagulação), disfunção endotelial e inflamação.
Este conjunto de fatores propicia os eventos cardiovasculares como o IAM, a SCA e o Acidente Vascular Cerebral (AVC).
O que fazer?
Como em toda a medicina, a profilaxia dos alagamentos seria a estratégia com melhor custo-benefício para a população.
A tecnologia hoje nos permite avaliar áreas de risco no qual intervenções deveriam ocorrer antes que as inundações ocorressem.
Medidas de engenharia como melhor drenagem e escoamento da água, aprofundamento das calhas dos rios, limpeza de bueiros e a construção de piscinões e diques podem reduzir os efeitos danosos das enchentes.
Também é fundamental a educação ambiental para o correto descarte do lixo urbano e redução do desmatamento.
Até mesmo, em situações extremas, o deslocamento de populações para áreas mais seguras irá contribuir para evitar calamidades.
Na eventualidade do desastre, o rápido socorro e provimento de condições adequadas para a ajuda humanitária e assistência médica é crucial para mitigar a morbimortalidade desta população.
Idealmente, já deveria existir um plano de emergência para catástrofes previamente elaborado pela defesa civil e treinamento periódico de sua execução.
Uma logística que permite rápido acesso as pessoas em situação de risco com fornecimento de alimentos, materiais de primeira necessidade, abrigo e medicamentos deve constar neste plano.
Passado o momento de enfrentamento agudo é necessário planejamento a longo prazo pois os efeitos deletérios à saúde irão se prolongar por anos com aumento da incidência das doenças cardiovasculares e psiquiátricas.
O enfrentamento destes desafios exige a união de todos: médicos, cientistas, climatologistas, engenheiros e toda sociedade civil organizada.
Devemos pressionar os governos constituídos, mas também atuarmos ativamente para não nos depararmos com novas situações de calamidade pública na magnitude que ocorre no Rio Grande do Sul e consternou toda nação.
Referências:
Satellite imaging reveals increased proportion of population exposed to floods Nature, 2021 Aug;596(7870):80-86. doi: 10.1038/s41586-021-03695-w.
Natural Disasters and Myocardial Infarction: The Six Years After Hurricane Katrina 2014DOI:https://doi.org/10.1016/j.mayocp.2013.12.013
Cardiovascular Diseases in Natural Disasters; a Systematic
Review. Archives of Academic Emergency Medicine, Vol. 9 No. 1 (2021), 1 January 2021 , Page e36
https://doi.org/10.22037/aaem.v9i1.1208
Parabéns por tudo e por tanto.
Seriedade e competência.
Excelente artigo. É necessário que se torne uma prioridade a discussão sobre a crise climática que atinge o mundo e as especiais consequências para os países em desenvolvimento.
Percepção científica e humana irretocáveis! Nos traz uma reflexão importante para entendermos o dor humana e suas consequências. Muito obrigada!