Houve muita repercussão decorrente do transplante cardíaco a que foi submetido o apresentador Fausto Silva trazendo à tona um tema que merece reflexão.
Afinal o transplante cardíaco é um tratamento para a insuficiência cardíaca terminal, isto é, quando não existem mais recursos farmacológicos ou cirúrgicos que possam minimamente restabelecer a função cardíaca para prover a manutenção da vida.
À primeira vista parece simples substituir um coração danificado e inoperante por outro saudável e capaz de manter a circulação tão vital a nossa vida.
Afinal, o coração é uma bomba de dois tempos (sístole e diástole) que impulsiona o nosso sangue pra dois circuitos: a pequena circulação para a troca do gás carbônico pelo oxigênio em nossos pulmões, e a grande circulação aonde o sangue oxigenado é conduzido ao restante do organismo para prover a energia necessária ao nosso metabolismo (veja mais em O Coração Humano).
Seria então como a troca de um motor num automóvel? Ao repor um novo motor o defeito estaria solucionado?
Bem, a questão é mais complexa e merece uma análise mais aprofundada sobre o tema.
Órgão Único
O primeiro ponto é que o coração é um órgão único e indispensável a vida.
A maioria das pessoas possuem dois rins ou dois pulmões e sobreviveriam com apenas um deles se estiver saudável.
Assim, por exemplo, no transplante renal é viável que um doador vivo doe o seu rim, para ser transplantado num outro indivíduo que esteja em diálise ou não por insuficiência renal, sem agravo ou prejuízo a própria saúde.
Isto é chamado de transplante intervivos. Ou, como no caso do fígado, é possível retirar uma parte do fígado do doador para implante no receptor.
E o de medula óssea que pode ser até autólogo, que é quando o próprio indivíduo retira uma porção saudável da sua medula óssea que é guardada e preservada para posteriormente ser transplantada nele mesmo, após a erradicação da medula doente com quimioterapia ou radioterapia, o que ocorre em certos tipos de leucemias e linfomas.
Mas não é o caso do coração.
Corações Alternativos
Não seria possível o transplante de um coração similar ao humano proveniente de um animal?
Bem, isto já foi tentado! Em 1964 transplantaram o coração de um chimpanzé para um paciente humano, este coração chegou a pulsar, mas foi incapaz de manter o paciente vivo.
E teríamos um grande empecilho que seria a rejeição, já descrita em 1933 em transplantes cardíacos heterotópicos nos pescoços de cães, pois os corações transplantados já apresentavam quadro histológico de rejeição.
Cabe elucidar que no transplante heterotópico, o coração do doador é conectado ao do receptor, sem que o órgão original precise ser removido, e os dois corações funcionam em paralelo.
Já no transplante ortotópico, o coração do receptor é removido para que o órgão do doador possa substituí-lo.
Coração Mecânico
Não poderíamos utilizar um coração mecânico ou artificial?
Já houveram diversas tentativas, mas sem sucesso, pois o funcionamento destes corações apresenta desafios difíceis de serem superados como: controle e manutenção do débito cardíaco conforme a demanda (fluxo) , o contato do sangue com partes mecânicas que pode gerar coagulação ou hemólise (rompimento das hemácias), fonte de energia confiável e durável, infecções, etc…
Bem, na realidade hoje estes dispositivos existem como bombas auxiliares ao coração insuficiente, que podem ser posicionadas nas linhas arteriais ou venosas.
Podem ser instaladas internamente ou externamente ao paciente. É denominado de assistência circulatória mecânica, e é um recurso paliativo e temporário, em geral utilizadas para preservar a vida do paciente com insuficiência cardíaca terminal que aguarda um transplante.
Assim, é indispensável a doação de um coração saudável de um indivíduo com morte cerebral identificada, para um receptor ainda vivo e com bom prognóstico, caso o transplante seja um sucesso.
Primeiro Transplante
O primeiro transplante cardíaco homólogo (entre indivíduos da mesma espécie) e ortotópico foi realizado em 1967 pelo Dr. Cristiaan Barnard, na cidade do Cabo, na África do Sul.
O paciente receptor do transplante permaneceu vivo por 17 dias e faleceu em decorrência de pneumonia.
O Brasil também foi pioneiro no transplante cardíaco homólogo e ortotópico, quando em 1968, uma equipe chefiada pelo Dr. Euryclides Zerbini realizou o primeiro transplante com sucesso no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O receptor viveu por 28 dias e faleceu devido a rejeição do órgão.
Compatibilidade
É preciso encontrar um coração saudável que seja compatível com o receptor.
Compatível no sentido de encontrar um doador com características similares ao receptor como massa corporal aproximada, pois não podemos transplantar um coração pequeno num receptor grande e vice versa.
E o maior desafio que é uma compatibilidade imunológica para minimizar a possibilidade da rejeição.
O ideal seria o transplante isogênico que é o transplante entre indivíduos geneticamente idênticos, mas isto é praticamente impossível.
Assim procura-se um órgão que tenha compatibilidade aceitável com o receptor: o mesmo tipo sanguíneo e a determinação da compatibilidade do sistema de Antígenos Leucocitários Humano (HLA) entre o doador e receptor.
Nos seres humanos o HLA é a nossa assinatura genética. Este sistema auxilia os leucócitos (nossas células de defesa) a realizarem a diferenciação de antígenos próprios do organismo e antígenos exógenos ou anormais.
Portanto, quanto maior a compatibilidade HLA menor chance de rejeição.
A rejeição nada mais é do que o reconhecimento do nosso sistema imunológico de um corpo estranho em nosso organismo, isto resulta numa agressão ao coração transplantado que pode ser desde leve até intensa, podendo resultar na destruição do novo coração.
A rejeição é frequente mesmo quando o coração transplantado é altamente compatível com o receptor, assim de rotina, se utiliza imunossupressores para suprimir ou reduzir ou a resposta imunológica do receptor ao órgão transplantado.
Este esquema inclui corticoesteróides combinados a outros imunossupressores, que podem variar de caso a caso.
Estes imunossupressores, além reduzir a nossa defesa as infecções, apresentam diversos efeitos colaterais possíveis, incluindo a insuficiência renal e a maior chance do surgimento de neoplasias, quando comparado a indivíduos saudáveis.
É fundamental que a rejeição tenha diagnóstico precoce para que medidas de aumento da imunossupressão sejam implementadas.
Esperar a manifestação clínica da rejeição pode ser tardio e a evolução catastrófica.
Assim, o paciente é submetido a biópsias programadas e frequentes para a busca ativa de um processo de rejeição na fase inicial, cujo tratamento tem bom prognóstico.
Cuidados com as Infecções
Como o paciente transplantado está permanentemente imunossuprimido ele se torna mais vulnerável as infecções sejam por vírus, fungos, bactérias ou protozoários.
Podem ocorrer tanto infecções comunitárias ou mesmo infecções mais raras de agentes oportunistas.
O diagnóstico neste cenário é desafiador pois o paciente imunossuprimido tem menor resposta inflamatória e manifesta menos sintomas.
Por outro lado, a infecção pode ter rápida evolução e maior gravidade. As infecções são importantes causa de mortalidade no paciente transplantado.
O cuidado e a vigilância quanto a infecções são mandatórios, tanto o paciente como os contactantes devem ter o esquema vacinal atualizado, profilaxia sempre que ocorrer procedimentos ou situações com risco de contaminação.
Havendo qualquer suspeita de infecção uma ampla pesquisa da etiologia e tratamento precoce devem ser instituídos.
Outros Problemas
Outro agravante é que a progressão da aterosclerose das artérias coronárias do coração transplantado é frequente propiciando desenvolvimento de coronariopatia significativa em cerca de um quarto dos indivíduos que receberam um transplante de coração.
O coração transplantado é denervado e os pacientes não têm os sintomas de angina pectoris cardíaca (dor precordial).
Nesses casos, somente a biópsia endomiocárdica é diagnóstica, sendo um motivo a mais para a rotina deste procedimento, mesmo em pacientes assintomáticos.
Acompanhamento Rigoroso
O paciente portador de um transplante cardíaco terá que ter acompanhamento rigoroso, controle dos fatores de risco para aterosclerose, manuseio regular da imunossupressão, biópsias regulares e vigilância constante das possíveis infecções.
Deve residir próximo ou ter rápido acesso a um centro médico especializado em transplantes, rotina de vida controlada e saudável.
O Brasil tem excelente resultado de sobrevida após o transplante, cerca de 13 anos, sendo destaque no mundo.
A Fila
Ocorre que existe uma fila única aguardando o órgão e os pacientes mais graves são priorizados.
Muitos infelizmente não recebem o transplante em tempo hábil.
Portanto, o transplante cardíaco é uma solução de casos terminais de insuficiência cardíaca.
É efetivo, mas é um tratamento crônico e dispendioso para o paciente, para a família e para o sistema de saúde.
O ideal é não necessitar deste recurso terapêutico e ainda que muitas situações de falência cardíaca sejam inevitáveis, o risco pode ser substancialmente reduzido com cuidados básicos de controle dos fatores de risco e estilo de vida saudável.
Por isto, visite regularmente o seu médico de confiança!